Ilustrador: Arthur Merchiori Dalmolin
Histórias de superação
Relato aqui alguns fatos de minha vida que puseram à prova a resiliência, a fé e até a vida. Superação. Histórias de superação. Relatar desafios enfrentados e superados nos faz perceber a beleza da vida, também nos momentos difíceis e de dor. Escolhi três, teria muitos outros, porém eles apresentam momentos diferentes da vida. Um ainda criança, outro na adolescência e outra situação como adulta. Ao final de cada episódio, apresento as principais forças que contribuíram para a superação da dificuldade ou do desafio que se apresentou. Hoje sei que sou o resultado de todas as experiências vividas e de todos os aprendizados que essas situações me proporcionaram. A vida é uma grande aventura! E como se torna leve, fluida, quando a abraçamos plenamente, acolhendo cada momento. Lembrando Victor Frankl “ Os fatos não são bons nem maus, nós é que os classificamos”. Assim também são as pessoas: ninguém é bom ou mau. As pessoas escolhem atitudes benéficas para elas e à comunidade, ou escolhem agir de forma a apenas beneficiar-se, sem perceber que elas existem enquanto coletivo, não somente em pequenos grupos, e que as escolhas que fazemos podem contribuir para fazer o bem ou apenas para proporcionar mais bens para alguns.
O frio do inverno e da ausência.
Era dia das mães. Eu devia ter uns 7 ou 8 anos. Não me recordo de a mãe ter ido em algum evento da escola. Se alguém ia, era o meu pai. Naquele domingo, teria uma homenagem às mães na escola e eu havia decorado uma poesia. Até emprestei a blusinha de tecido suave, cor verde-bebê, da minha irmã mais velha, para ficar mais bonita, mas estava gelada, porque o calçado era um chinelo de dedo e a blusinha era bem fininha. Ao entrar na igreja, pois a homenagem era após a missa, uma professora me disse: “Você deixa a colega dizer a poesia?” Quando olhei para a colega, eu a vi em uma blusa de tricô rosa maravilhosa. Mas virei para a professora e disse: Não, eu vou ler a poesia! A professora ainda tentou argumentar: “mas sua mãe vem?” Eu sabia que a mãe não viria, mas disse: sim, ela vem, e eu vou declamar a poesia. E assim o fiz. Guardo esse fato na memória, e talvez ele tenha gerado em mim a convicção de que se eu não podia conquistar meu espaço pela aparência (vestimentas), poderia ganhá-lo tirando boas notas. E assim foi, apesar de ouvir dos professores da época que nenhum aluno merece dez. Mentalizei que ter notas acima de sete estava ótimo. Portanto, lia, lia muito, tanto que hoje nas madrugadas insones, lembro de quando eu não tinha ideia de que horas parava a leitura. O fato de ler favoreceu o enriquecimento do vocabulário e as minhas redações eram elogiadas. Entretanto, também vi poesias serem “descartadas”, porque, segundo quem avaliou, o vocabulário utilizado indicava que havia copiado e não poderia ser fruto das madrugadas de leitura. Falando em madrugadas de leitura, os livros que eu lia eram também para fazer trabalhos (ficha de leitura ) para colegas de sala. Na Escola Maura de Senna Pereira, onde estudei e também trabalhei, desde 1999 existe um projeto que estimula a produção de poesias. Os textos resultam na publicação de um livro por ano. Importa salientar que eu participei da primeira comissão que lançou o projeto, assim abrimos caminhos, aprendemos a fazer na prática. Não houve ninguém para nos dizer que não conseguiríamos, até porque já havia um grupo de poesias reunidas, datilografadas. O estímulo daquele trabalho, a beleza dos textos me fizeram acreditar.
Todos de sapato preto.
Dia da pátria, ao som do tambor, ou dos tambores, a fanfarra fazia a “alvorada” passeando pelo centro da cidadezinha com seu batuque. Eu tocava surdo. O uniforme era uma camiseta cacharel branca e calça bordô. Estávamos reunidos para as últimas combinações e, após saber a hora da chegada para a “alvorada”, em que a batida seria samba, entre outros, uma das colegas disse: “E todos com sapato preto!” Eu não disse nada, nem ali, nem em casa. No dia seguinte todos estavam lá com seus sapatos pretos, menos eu, a única a calçar um sapato amarelo queimado com 3 tirinhas de tonalidades mais claras e mais escuras. Ninguém “viu” e eu toquei o surdo. Ufa! Daquela vez, ninguém chegou pedindo para me substituir. Foi a única vez, porque no ano seguinte eu estava em outra cidade. Criada em Pinheiro Preto, sem nunca ter estado sequer em Videira, lá estava eu, estudando no renomado Colégio de Curitibanos, cursando o Magistério. Ao longo da vida profissional, encontrei muitas crianças, adolescentes e jovens criando ou contando histórias para justificar alguma situação. Procurei ter como princípio o respeito e acreditar no que era dito. Questionar, sim, mas ouvir para entender as razões das escolhas. Se não tenho sapato preto, vou de amarelo, porque é o único que tenho e o surdo não fica mudo também. Para mim, só existia uma saída: ir, independentemente da cor do sapato.
Depressão
Quem conhece o tamanho, a profundidade e a crueza dessa dor, entenderá o que sente quem se depara com esse desafio. Qual a razão? O que desencadeia o processo? Não é uma única causa, não é um fato. Talvez aquela menina que se defendeu diante do desprezo ou que se calou quando sabia que não conseguiria cumprir alguma determinação, sentisse então o resultado de tudo isso. Calei-me também em casa, porque sabia que dinheiro só tinha quando o pai vendia um chiqueiro de porcos, um boizinho, uma vaca, algumas sacas de milho ou feijão ou o melado produzido pela família. Era nessas ocasiões que tínhamos a esperança de ganhar um sapato novo para ir à escola, um “Conga” (lembro de ter tido um) ou até um novo “amigão”, o bom chinelo havaiana. Quando chovia e tinha barro íamos, a maioria dos colegas e eu, descalços, limpávamos os pés na “picuia” (tipo de grama) e lavávamos os pés nas torneiras localizadas perto da escola. Só depois entrávamos na sala. Os felizardos tinham chinelos de pano, os demais passavam a aula com os pés gelados mesmo. Nos dias de chuva era divertido observar a troca de calçados na hora de ir embora. Nesse caso, ir descalço tinha suas vantagens.
Voltando à depressão: eu tinha cursado Pedagogia com Especialização em Supervisão Escolar, mas atuava como secretária escolar, então quis mudar de função na escola. O computador estava surgindo e que maravilha era aquela máquina que corrigia o texto sem precisar colocar corretivo ou ter que teclar exatamente sobre a letra, na esperança de não ter que reescrever todo o trabalho. Fiz o concurso para Pedagoga e fui aprovada. Ao trocar de trabalho, vieram outras mudanças. Das 12 pessoas com as quais eu convivia na época, somente 3 continuaram a ter contato próximo comigo na nova função. Além disso, eu era religiosa e a comunidade da época era pequena. Naquele momento, muitas emoções estavam envolvidas: nova rotina, insegurança, trabalho novo, pai gravemente doente e, em pouco tempo, fiquei desanimada. Coisas estranhas e sem explicação aconteceram, que geraram sentimentos de solidão, desconfiança e insegurança. Chorava em qualquer lugar. Sentia-me um lixo, por mais que quisesse lutar, não tinha forças, tudo parecia agravar a problemática. Ouvia: “Não quero te ver chorando! Se chorar não fica no trabalho!”. “Se ajuda”! E eu apenas pensava em quanta força seria necessária para partir minha cabeça ao meio nos pilares da escola, mas não apenas machucar! E se desse conta de fazer, o que aconteceria? Por que eu não conseguia reagir? Ah! Eu fazia terapia uma vez ao mês. Pensava que deveria funcionar e que, como sempre escutei, eu não estava fazendo minha parte. A saúde do meu pai piorou e ele faleceu. Nos seus últimos quarenta e cinco dias de vida, minha mãe, meu irmão mais novo e eu nos revezamos para cuidar dele. Dormíamos a média de 3 ou 4 horas por noite, e muitas vezes acordávamos sobressaltados. Quem já cuidou de alguém com tratamento paliativo entende o que digo. Enquanto nós estávamos desanimados e tristes, ele sempre parecia otimista, mesmo ciente de sua condição. Seu otimismo era amor à vida, à simplicidade, à presença. Ele era um homem forte, sem nunca ter estado doente antes, partiu. Enquanto isso, minha mãe havia passado por inúmeras situações difíceis e jamais imaginou que ficaria viúva.
Após a partida de meu pai, tentei retomar a vida, até porque eu era funcionária pública. Continuei com terapia mensal e tomava antidepressivo. Para ter a receita, precisava ir ao médico, uma vez que a psicóloga não emitia receita. Ali, mais uma surpresa, em uma das consultas fui assediada pelo médico. Nesse dia, saí correndo do consultório. Para piorar a situação, a secretária do médico era a própria esposa dele. Não disse nada e fiz o “desmame” (deixando de tomar o remédio) da forma que eu sabia. Se falasse para alguém, a culpa provavelmente recairia sobre mim mesma, considerada uma moça religiosa e jovem. Na época, eu respondia pela direção adjunta da escola. Em que condições? Pode-se imaginar. Meu socorro era a oração, a terapia, a fé de que iria passar e de que as coisas eram assim. Um ano e pouco depois, chegando na casa da minha mãe, deparei-me com ela deitada no sofá – ela havia tido uma convulsão e não estava caminhando, ainda usava chapéu na cabeça e as janelas estavam fechadas. Não tive dúvida. Era hora de voltar para casa e ajudá-la.
O médico havia dito que dificilmente ela voltaria a caminhar. Na época, quem morava com ela era apenas meu irmão solteiro. Por conta da situação, ele parou com todas as suas atividades profissionais e vida social, ficando deprimido também. Assim, decidi que iria voltar para casa e ficar lá por um ano para ajudar meu irmão, porém o ano de licença tornou-se uma decisão permanente.
Hoje eu sei que me envolvi com a vida de meus pais através da dor, da morte e do sofrimento. Mas não me via como sofredora. Apenas buscava encontrar satisfação nas coisas que fazia. Nesse período, um sentimento me manteve: a fé. Eu trabalhava e cuidava da mãe. Em um ano ela já caminhava e viveu comigo por mais 20 anos. E eu? Milagrosamente me vi livre da depressão? Não, ela foi minha “pedagoga” permanente. Consegui olhar para mim e buscar mais uma vez a terapia. Nos primeiros tempos, fazia sessões duas vezes por semana. Também fui internada por um mês em um local onde conheci várias terapias, meditação, oração e fui “atravessando as portas estreitas”, ou seja, enfrentando os obstáculos, conforme eles apareciam. Consegui ter paciência comigo para buscar apoio. Acreditava que milagre é a mudança do rumo natural das coisas, uma vez que, estando num caminho de morte, acreditei na vida. Quantos amigos estenderam a mão! Quantas pessoas com quem eu convivi não conheciam a turbulência que era meu ser. Envolver-me com atividades foi uma forma de manter a mente ocupada, viva, criativa, focada na vida. O grupo de estudos bíblicos representou força, sustento, energia, porque líamos de forma viva, presente, logo, era algo que aproximava, encorajava, fazia sentir a companhia dos participantes. Sem dúvida alguma as dificuldades existem para serem superadas. Não existe solução padrão, por mais comum que seja o problema. A vida de cada um tem a nuance, o ajuste, o ritmo da pessoa. E que riqueza cada pessoa é! Nos últimos tempos aprendi a olhar aquilo que precisa ser olhado e percebo que a reconciliação devolve o fluxo do amor.
Há outras superações na minha vida. Sim, todos os dias somos chamados para superar nossos limites, também aprendemos a reconhecer os limites e avançar, apesar deles. Nós nos encontramos diante de situações que pedem coragem, mas sentimos medo. A vontade de estar do outro lado, em outra situação, precisa ser mais forte que o medo. O fato é que se olharmos (procurarmos), sempre haverá alguém ou algum instrumento que poderemos utilizar e que nos ajudará a acreditar. Ao longo dos dias, coisas como apertar a base da unha, repetir uma palavra respirando e prestando atenção na respiração, tomar uma cafezinho, uma água, comer um doce, caminhar, conversar e rezar são algumas das coisas que serviram de muleta, suporte ou remédio (além do remédio em si) nesses momentos de superação. Quero terminar lembrando um recorte da canção: Fé na vida, fé no “ser humano”, fé no que virá, nós podemos muito, nós podemos mais. E Deus, esta energia de Vida, sustenta, mantém, encoraja, não falta àqueles que nele põem sua confiança.
Ilustrador: Acxel Pocera
Autora: Vera Regina Mazureck
(Publicado em agosto de 2024)
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